O pensamento indígena propõe um diálogo com dimensões do conhecimento que nos são estranhas, um campo que opera para além dos modos ordinários de conceber o mundo e a existência. Durante séculos subsumido ao entendimento de “primitivo”, o pensamento indígena emerge na contemporaneidade como um modo original de pensar e conceber o(s) mundo(s), e está cada vez mais galgando seu espaço de direito e se inserindo no debate filosófico.
Em tempos de pandemia, o exercício da escuta das vozes originárias que ecoam na multiplicidade do pensamento indígena não só é uma emergência, mas um movimento que urge por expressar sua perspectiva acerca do real, da existência, do mundo, do cosmos, da natureza, dos espíritos – como um clamor da própria natureza alertando para as ações nocivas do socius humano e dos seus modos de habitar no mundo.
A filosofia, como por nós é tradicionalmente pensada e ensinada, tem a tendência histórica pela universalização do ser, da verdade, do conhecimento e de todos os conceitos fundamentais para nossa compreensão de mundo. Nesta perspectiva, o saber indígena é esvaziado de conteúdo ontológico ou, melhor dizendo, o indígena é aquele que não detém os conceitos fundamentais da metafísica de modo tal que seus modos de ser estariam limitados em relação a o saber filosófico.
Mas é justo aí onde os mestres da floresta se erguem para propor um diálogo contrafilosófico – um contraste, não uma oposição – com a Filosofia, um diálogo que se estabelece em planos não-ordinários tão (ou ainda mais) metafísicos quanto a “nossa filosofia” se propõe; um diálogo que, ao invés do uno, vê o múltiplo; em lugar de uma natureza, a multinatureza; mais além do igual (e da identidade), o diferente (da diferença). Aqui, tampouco cabe falar em “Universo”, mas nos “multiversos” que povoam os pensamentos indígenas.
A imagem que se projeta sobre o pensamento indígena deve ser descolonizada em todos os sentidos e, sobretudo, naquilo que se refere à autonomia dos seus modos de ser e de pensar o mundo em que habitam. A “Filosofia”, nos liames do seu autoconceito universalizado, coloniza os outros modos de ser e de pensar a partir de padrões universalmente aceitos, de realidades ordinariamente estabelecidas.
Nesse sentido, o pensamento indígena é contrafilosofia porque é o modo de pensar que derruba os muros onde a Filosofia criou o seu reduto, o modo de pensar que implode a colônia, permitindo ao pensamento expandir para dimensões e horizontes desconhecidos, que os mestres da floresta, em contato íntimo com a natureza e o cosmos, já refletem e trilham desde tempos imemoriais.
Assim, esse diálogo se propõe como a criação de um espaço autônomo para o livre exercício dos modos de pensar indígenas. Um espaço onde todos os povos possam expressar suas vozes sem o apelo de um pensamento universalizador que se sobreponha à sua própria perspectiva e livre-exercício de pensar. Não mais apenas a nossa metafísica, mas a dos outros. Um lugar onde o pensamento huni kuin, guarani, maxakali, tukano e de toda diversidade autóctone possa discorrer livre de amarras e como genuína filosofia. Um espaço de fala e reflexão que nos permita escutar os apelos da natureza para modos sustentáveis de vida – tão caros à nossa contemporaneidade – modos e saberes os quais os povos originários são os maiores detentores.
Por: Vinícius Renzulli