Os múltiplos devires do “Pensamento Indígena”

Muitas vezes, nos referimos a “O Pensamento Indígena” como se houvesse uma forma ou um modelo que se permita capturar num conceito universal do que seja tal pensamento. Esse termo singular, de teor genérico, nada mais é que uma expressão para designar algo que se configura por multiplicidades de pensamento, pois esse pensar indígena é povoado por múltiplos devires, se caracterizando por diferenças intensivas de perspectivas e de mundos.

Assim, o teor desta expressão jamais se resume a um gênero de pensamento, é uma expressão à qual o próprio conceito que, aparentemente, ela pode exprimir, foge ao seu alcance. Afinal, como designar multiplicidades constantes de devires, multiplicidades ontológicas que podem transitar num mesmo corpo físico, diferenças superpostas por diferenças, num conceito singular e que parece soar genérico?

A multiplicidade e a diferença são as matrizes de infindáveis mundos habitados por múltiplos seres, povoados por múltiplos pensares, que, por ser movido por constantes devires, dá ao pensar indígena a característica de ser sempre outro, nunca o mesmo. “O Pensamento Indígena”, para além da referência à diversidade de povos autóctones existentes no planeta, refere-se também a cada pessoa integrante de determinado povo e, ainda e sobretudo, aos múltiplos devires – humanos e não-humanos – que povoam numa pessoa.

Pensamentos Indígenas, como os múltiplos pensares das pessoas e dos povos autóctones, jamais podem ser capturados pela unidade de um conceito universal, pois a totalidade desse pensar é algo que, intrinsecamente, se caracteriza pela multiversidade que sobrepassa qualquer forma de conceito, não podendo ser subsumido a uma ontologia fundamental.

Por: Vinícius Renzulli

O pensamento indígena

O pensamento indígena propõe um diálogo com dimensões do conhecimento que nos são estranhas, um campo que opera para além dos modos ordinários de conceber o mundo e a existência. Durante séculos subsumido ao entendimento de “primitivo”, o pensamento indígena emerge na contemporaneidade como um modo original de pensar e conceber o(s) mundo(s), e está cada vez mais galgando seu espaço de direito e se inserindo no debate filosófico.

Em tempos de pandemia, o exercício da escuta das vozes originárias que ecoam na multiplicidade do pensamento indígena não só é uma emergência, mas um movimento que urge por expressar sua perspectiva acerca do real, da existência, do mundo, do cosmos, da natureza, dos espíritos – como um clamor da própria natureza alertando para as ações nocivas do socius humano e dos seus modos de habitar no mundo.

A filosofia, como por nós é tradicionalmente pensada e ensinada, tem a tendência histórica pela universalização do ser, da verdade, do conhecimento e de todos os conceitos fundamentais para nossa compreensão de mundo. Nesta perspectiva, o saber indígena é esvaziado de conteúdo ontológico ou, melhor dizendo, o indígena é aquele que não detém os conceitos fundamentais da metafísica de modo tal que seus modos de ser estariam limitados em relação a o saber filosófico.

Mas é justo aí onde os mestres da floresta se erguem para propor um diálogo contrafilosófico – um contraste, não uma oposição – com a Filosofia, um diálogo que se estabelece em planos não-ordinários tão (ou ainda mais) metafísicos quanto a “nossa filosofia” se propõe; um diálogo que, ao invés do uno, vê o múltiplo; em lugar de uma natureza, a multinatureza; mais além do igual (e da identidade), o diferente (da diferença). Aqui, tampouco cabe falar em “Universo”, mas nos “multiversos” que povoam os pensamentos indígenas.

A imagem que se projeta sobre o pensamento indígena deve ser descolonizada em todos os sentidos e, sobretudo, naquilo que se refere à autonomia dos seus modos de ser e de pensar o mundo em que habitam. A “Filosofia”, nos liames do seu autoconceito universalizado, coloniza os outros modos de ser e de pensar a partir de padrões universalmente aceitos, de realidades ordinariamente estabelecidas.

Nesse sentido, o pensamento indígena é contrafilosofia porque é o modo de pensar que derruba os muros onde a Filosofia criou o seu reduto, o modo de pensar que implode a colônia, permitindo ao pensamento expandir para dimensões e horizontes desconhecidos, que os mestres da floresta, em contato íntimo com a natureza e o cosmos, já refletem e trilham desde tempos imemoriais.

Assim, esse diálogo se propõe como a criação de um espaço autônomo para o livre exercício dos modos de pensar indígenas. Um espaço onde todos os povos possam expressar suas vozes sem o apelo de um pensamento universalizador que se sobreponha à sua própria perspectiva e livre-exercício de pensar. Não mais apenas a nossa metafísica, mas a dos outros. Um lugar onde o pensamento huni kuin, guarani, maxakali, tukano e de toda diversidade autóctone possa discorrer livre de amarras e como genuína filosofia. Um espaço de fala e reflexão que nos permita escutar os apelos da natureza para modos sustentáveis de vida – tão caros à nossa contemporaneidade – modos e saberes os quais os povos originários são os maiores detentores.

Por: Vinícius Renzulli